terça-feira, outubro 16, 2007

O torcedor, um consumidor?

(O consumidor pode ser um torcedor, mas o torcedor não deve ser um consumidor)

Acabo de ler uma matéria no Globo.com a respeito da última pesquisa sobre as torcidas dos clubes brasileiros, "Pesquisas confirmam os cinco maiores". A pesquisa, realizada pela CNT/Sensus, diz o mesmo que as pesquisas anteriores: as maiores torcidas brasileiras continuam sendo a flamenguista, a corintiana, a sãopaulina, a palmeirense e a vascaína (respectivamente, em ordem de grandeza). As porcentagens divergem um pouco, mas a ordem não.

Pois bem, estou escrevendo agora, não pela pesquisa em si, mas sim pelo que li no último parágrafo da referida matéria. É conhecido que o dirigente sãopaulino, o Marco Aurélio Cunha, gosta muito de provocar os adversários, dar declarações polêmicas, criar um clima sobre qualquer assunto referente às rivalidades entre os clubes. O que não é ruim, pelo contrário, é algo que ele sempre faz respeitosamente. Futebol também serve (aliás, só deveria servir) para diversão, e na medida em que as rivalidades não ultrapassam a linha do fanatismo, as provocações entre os rivais são gostosas de se ver. Porém, não dá para admitir o que ele afirma em sua declaração. Não dá para admitir que "o torcedor quer títulos e administração limpa" somente.

Como eu disse, o referido sãopaulino é um provocador. É fácil perceber que ele só está puxando a sardinha pro lado dele, exaltando o momento atual em que o São Paulo Futebol Clube vive, já que o clube concorre o título de todo campeonato que disputa, o que é fruto de sua administração. É óbvio que o objetivo primário de sua declaração é alfinetar a torcida corintiana que, apesar do desastre que é a sua administração, tendo em vista o noticiário sobre a política alvinegra dos últimos tempos, ainda detém a hegemonia perante a massa de torcedores dos clubes paulistas. Com a manutenção da fase em que Corinthians e São Paulo atravessam hoje, conforme disse o Marco Aurélio, amanhã a torcida sãopaulina ultrapassará a corintiana, o que seria um golpe tremendo no ego dos alvinegros, que se orgulham de ser a maior torcida de São Paulo, e ainda contestam a hegemonia flameguista em nível nacional.

Contudo, o que está no pano de fundo de sua declaração transcende o contexto das rivalidades entre torcidas. Quando o dirigente tricolor diz que o "torcedor quer títulos e administração limpa", ele poderia estar dizendo que o "consumidor quer títulos e administração limpa". E também não seria absurdo nenhum dizer que o "cidadão quer administração limpa", se levarmos a coisa para o âmbito dos direitos políticos. Mas vamos ficar somente no contexto mercadológico, que é o que acho mais importante para a discussão, uma vez que o futebol é um negócio que gera muito dinheiro. Para uma pouca gente, infelizmente.

Eu vou falar por mim. Eu não torço pro Palmeiras só porque eu quero títulos e administração limpa. O Palmeiras passou por uma fase de jejum de títulos justamente na fase em que eu me descobri gente e me interessei por futebol. Eu nasci em 1980, fui ao estádio a primeira vez em 1986, quando assisti a um Palmeiras x Corinthians no Pacaembu, levado por meu pai. Ali fazia dez anos que o Verdão não erguia taça alguma, algo que foi acontecer somente em 1993. Durante esse período de jejum, como eu sonhava em ser jogador de futebol, já cheguei a vestir a camisa corintiana nos campeonatos de mirins da várzea. Já cheguei, inclusive, a pegar autógrafos de corintianos como o Neto e o Ronaldo, uma vez que eu treinava nos terrões do Parque São Jorge, justamente naquele ano em que o Corinthians foi campeão brasileiro pela primeira vez. E nem por isso eu deixei de ser palmeirense. E depois, quando a Parmalat foi-se embora, levando junto os grandes esquadrões alviverdes da década de 90, e em seu lugar veio a pior administração palmeirense de toda a sua história - pois nunca poderemos nos livrar da queda a Série B em 2002, fruto da medíocre administração de Mustafá Contursi que, junto com Vanderlei Luxemburgo, foi o principal responsável por esta mancha na vida de cada palmeirense - nem isso tudo me fez desistir da minha paixão.

Aliás, é justamente por isso, pela paixão que move cada torcedor, que não dá para admitir a declaração de Marco Aurélio. Quando uma pessoa escolhe um time para habitar o coração, não é por causa dos títulos que o time vem ganhando. Se fosse assim, eu não seria palmeirense; a torcida corintiana estaria à beira da extinção em 1977, quando findou o jejum de 23 anos sem títulos (e além de não estar para se extinguir, ainda era a maior de São Paulo); e a torcida sãopaulina já era para ser a maior do Brasil, pois já faz mais de dez anos que o tricolor é bi-campeão mundial (agora é tri), e o Flamengo é somente campeão mundial, título conquistado no longínquo 1981.

Definitivamente, o torcedor não quer títulos e administração limpa. Ele quer é torcer pelo time que ele se apaixonou, só isso. E digo mais, é esta visão mercantil e, a meu ver, tacanha do futebol que vai matar o próprio futebol. Pois hoje é o tempo em que os jogadores trocam de time como se trocam de cueca, o que já limou os ídolos das torcidas brasileiras, salvo às exceções de praxe (Marcos e Rogério Ceni). Hoje é o tempo do futebol brucutu, em que se exalta o pragmatismo burocrático, expressado pelo próprio São Paulo, em detrimento dos craques, como o Kérlon ou o nosso Valdívia, que quando tentam expressar a sua arte, são caçados impiedosamente pelos truculentos de dentro do campo, os zagueiros e volantes do naipe de Gavilán e Sandro Goiano, e de fora do campo, os cronistas do naipe de Paulo Morsa ou Arnaldo César Coelho, que vivem a dizer por aí que tal jogador é cai-cai, ou que tal jogador provoca os adversários.

Felizmente, as razões para que um torcedor seja torcedor são muitas, não só a razão apresentada pelo Marco Aurélio. Porém, as razões para que o futebol brasileiro esteja nesta condição em que se encontra são muitas e, infelizmente, este espaço é pequeno e insuficiente para esmiuçá-las. O que quero deixar explícito é que a minha defesa aos craques e aos ídolos de futebol não é puro saudosismo. É uma tentativa de se fazer abrir os olhos dos empreendedores do futebol. Antes de o futebol ser esse colosso mercantil que é, o futebol foi amador e movido pela paixão. Aliás, ainda é movido pela paixão, pois o torcedor, tanto na frente da tevê como sentado na arquibancada, quer é ver os grandes lances, vibrar com as jogadas espetaculares, comemorar os golaços. O torcedor quer é se emocionar.